O LAR DOS DEUSES
O branco, nada mais, assim como o início e o fim dos tempos. A presença forte da luz trazida pelo vazio ou a ausência das trevas densas da consciência.
Ouve-se passos irregulares, tais como as batidas de um coração inundado de um amor furioso, misturados com a angústia solitária de quem ama perdidamente. Abstraindo as paredes de concreto e sonhos, deparamo-nos com um ser hominídeo; talvez um homem ou uma consciência fragilizada pela falta da monótona razão.
Anda em extremos de ansiedade e cansaço mas como quem procura nas paredes repletas de vazio e sonhos o que, quiçá só encontre quando fechar os olhos e parar de procurar no vazio de sua loucura um sentido que nunca encontrará posto que nunca existiu desde que o primeiro homem acendeu a primeira faísca.
Abruptamente ouve-se e vê-se o silêncio. Isto mesmo. O silêncio foi visto, não escutado. Este resquício de nada que ora corria como quem queria derrubar de sua cabeça seus sonhos, ora aproveitava a leve brisa que também os sonhos lhes trazia.
Estático, como quem pára de sonhar, mira o copo (única presença de vida em seu quarto preenchido pelo alvo em todos os cantos e móveis mortos construídos por homens menos vivos do que o que agora olha para o copo com água).
Isso é facto! -Diz o morador do quarto branco de fronte ao copo com água-. Facto, facto, facto. Criarei hoje um mundo. Mas que terá nesse mundo? Pergunta-se. Terá pudim de chocolate, isso mesmo, e sorvete de chocolate também. Terá montanhas de sorvete de chocolate. Preciso também fazer mares. Mares de água doce, doce como açúcar. Não haverá água salgada.
Não. Não haverá água. Lembrei que um amigo meu morreu afogado. Isso mesmo. Meu primeiro amigo e, talvez o único, morreu afogado. Estávamos voando juntos e voamos tão alto que ele se afogou no mar do céu, pois o céu é azul porque é o mar; todos sabem disso.
Haverá muita luz, isso sim. Porque quando escurece os monstrinhos que ficam embaixo dos nossos cabelos saem para povoar o mundo. Por isso que rasparam meus cabelos. É verdade! A mulher do toc-toc me falou, e ela sempre fala coisas terríveis sobre os monstros e fantasmas, mas diz também que aqui é o melhor lugar do mundo inteiro para mim; e você já deve ter escutado isso.
Sim, voltemos.
No meu mundo as pessoas vão voar, mas não como voam as pessoas dos outros mundos, elas voarão com as pernas. Porque as asas já são dos anjos. A mulher do toc-toc me fala que, quando fecho os olhos, os anjos, que são homens que moram aqui no teto, vêm me visitar. Ela também traz presentes que eles trazem pra mim. Sempre que escuto o toc-toc é porque vem um presente para mim, é verdade. E eu tenho que aceitar, se não eles ficarão tristes comigo. Ela disse, e ela sempre fala a verdade.
Que barulhos são esses? Eles vêm do outro lado dessas paredes. Mas a mulher do toc-toc diz que pessoas como eu, ela sempre me chama de especial, têm que ficar aqui.
Outra vez estático, o morador do quarto branco levanta o olhar do copo e olha para a parede branca. Dever-se-ia pensar que fita uma paisagem.
Que barulhos são esses? Pergunta-se. Creio conhecer, algo em mim já sentiu esses sonhos.
Ainda mirando fixamente a parede branca, escuta pessoas gritando, outras chorando e, repentinamente, vê na parede branca à sua frente, um casal jantando.
O homem aumenta o tom da voz e corre em direção ao porta talheres. Dentro de uma gaveta encontra um objeto que brilha a meia luz e volta à mesa. Ainda de pé, segurando o objeto resplandecente, o pressiona contra o próprio pulso. O rubro se mistura ao vinho derramado sobre a mesa, que outrora fora romântica. A mulher está debruçada sobre a mesa. A cena também é rubra, mas não por se tratar de uma cena de amor.
Espere, o que estou fazendo aqui? Pergunta-se estupefado.
Olha ao seu redor. Estou preso! Estou preso! Afirma deixando cair uma lágrima salgada sobre os antigos sonhos doces.
Sua boca treme, então ele abaixa a cabeça e levanta a manga do casaco, branco como o quarto, como o próprio vazio. Espantado e em lágrimas, em seus pulsos vê duas cicatrizes feitas por algum objeto cortante e duro contra uma pele frágil e cheia da loucura que o amor traz.
Escuta um barulho parecido com um toc-toc e corre como se pudesse fugir; dentro daquelas paredes brancas tenta se esconder.
A porta abre e uma mulher com uma bandeja entra dizendo: Cá está o presente dos anjos, se você não tomar, eles ficarão tristes. Então, entra no lar dos deuses de instantes atrás, mas ainda louco como qualquer deus.
Encolhido no canto, chorando e tremendo, aceita tal presente que a mulher lhe entrega junto com o confidente de instantes, o copo com água.
Para receber o presente dos anjos é preciso se Deus.
Após tomar o comprimido, a mulher dá as costas e sai. Ele tremendo e chorando permanece encolhido.
Depois de alguns minutos adormecido no lar dos deuses, acorda e olha para o copo novamente cheio.
Então, nessa casa de corredores e quartos brancos, escuta-se, de dentro de um quarto alguém gritar: Facto, facto, isto é um facto!
terça-feira, 19 de agosto de 2008
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Um comentário:
mto bom, mimi
;*
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